quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CARTA


                   UMA CARTA PARA MARIA

Carta escrita por  Herbert de Souza (o Betinho) para sua mulher Maria e lida, um ano após sua  morte, pelo ator Jonas Bloch, durante a cerimônia no CCBB:
"Este texto  é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve  demorar muito. É uma declaração de amor.
Não tenho pressa em morrer,  assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas  vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para  Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela  também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade. Nos  conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo.  Havia uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.
Antes  de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram
animadores,  apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi  no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo.
Saímos em direção ao fim da  linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito,  espremido, mas gostoso, um beijo público.
A barreira da distância estava  rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!
O  Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que  qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na
clandestinidade sem  sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos  fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa  cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor  naquele tempo!
Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto  prazer.
Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia,  amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou "cair". Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno  na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez  para
elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em  seus discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar  discurso
politico... Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi  um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era verdade, o Brasil  era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não
havíamos comido no  exílio: angu! com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com  maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias,  um reencontro com o Brasil pela boca.
Uma das maiores emoções da minha  vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem  limite que me fez reencontrar a infância.
Depois do exílio, nossas  vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos;
viajávamos nas férias, visitávamos  os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma  trégua. Henrique crescia,
Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como  filho e amigo.
Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas  nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A Aids. Em 1985, surge a  notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O  pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter  nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente  físico.
Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século,  mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais  do
que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo,  mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou  um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar  tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.
Assumi  publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs  um "senão" ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu  junto como se fosse metade de mim,
inseparável. E foi. Desde os tempos do  cólera, da não esperança, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises  que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo  curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.
Um dos maiores  problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter?  Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa  amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas  até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo  risco.
Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como  se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e  mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura,  da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que  fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta  assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.
Para se falar de uma  pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que  este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e   principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber  quando, mas sei que não demora muito.
Quero morrer em paz, na cama, sem  dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião  para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das  pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma  só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem  dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja  gelada.
Te amo para sempre,

Betinho,

Itatiaia, janeiro de  1997"


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